30/04/2024
Que delícia de texto ❤
A minha mãe tem noventa e três anos, está cega, está surda, é um farrapinho que o menor sopro leva e, no entanto, lembra-se do peso com que os seis filhos nasceram, das peripécias de cada parto, dos primeiros dentes, do momento em que começaram a falar, a andar, a tudo o resto, doenças, operações ao apêndice, gracinhas, e dá-me ideia que os considera, ainda hoje, como as crianças que foram, mascaradas de adultos. Ontem, ao despedir-me dela, beijei-a e a reação foi
— Isso é maneira de se dar um beijo?
seguida de
— Um beijo como deve ser, se fazes favor
e lá lhe pus, na bochecha, um beijo como deve ser. E tinha razão porque me limitara a roçar-lhe a testa com a boca. Várias vezes a ouvi perguntar aos meus irmãos
— Não sabes dar um beijo como deve ser?
de pé, minúscula, mirando as sombras que agora somos para ela e que, mesmo assim, consegue avaliar
— Estás mais gordo, estás mais magro
com uma exatidão infalível. Passa connosco os jantares de quinta-feira em silêncio, o Pedro grita-lhe na orelha as poucas coisas que lhe dizemos, vive, sem uma queixa, numa solidão absoluta
— O que é que faz o dia todo?
— Penso
às voltas com recordações, memórias.
___António Lobo Antunes