É no primeiro fim-de-semana de Setembro que a freguesia de Felgueiras (Torre de Moncorvo) celebra a festa em honra de Santa Eufémia. É, sem dúvida, uma das mais interessantes e genuínas romarias populares onde, em cada ano, se acentua cada vez mais a sua vertente cultural, o que mais impressiona nesta romaria é a sua significado antropológico e comunitário. Ao longo dos anos estabeleceu-se uma rel
ação de verdadeira cumplicidade entre a virgem Santa e os mourejantes populares, a qual se manifesta em expressões de verdadeira fé, em atitudes de assombro desafio aos poderes sobrenaturais, em expressões carregadas de significado cultural.
É assim que nós ouvimos, com a maior das naturalidades, as pessoas falarem da Santa como se fosse a sua “menina” e a sua “ganhona”. A sua menina porque é pura e lhe querem mais que a tudo; a sua ganhona porque ela efectivamente ganha todas as promessas e não há memória de alguém se sentir desprotegido e defraudado. É como se existisse um contrato entre eles e a Santa:
“Nós damos, somos teus devotos, para que tu nos dês, nos protejas”. Conta-se na aldeia um episódio significativo a este respeito. É que, quando algum incêndio deflagrava ou a trovoada ameaçava, a primeira coisa que as pessoas faziam era subir ao Monte Ervedal, tirar a Santa da sua capela e colocá-la sobre uma fraga, desprotegida, na montanha. Restava-lhe assim fazer o “milagre” de “arramar a trovoada” ou fazer mudar a direcção do vento e apagar o fogo, caso contrário... Santa Eufémia ficaria à mercê dos raios e coriscos ou corria o risco de ser devorada pelo incêndio do monte, coisas impossíveis, já se vê. A festa, por sua vez, marcava o ritmo das colheitas e da vida nos campos. Nesse dia, os cereais tinham que ser malhados, as palhas recolhidas e as eiras limpas. Essa era a semana para semear as nabiças, pois chovia de certeza. No dia seguinte iniciava-se a apanha da amêndoa. Sobre o assunto, ouvimos o seguinte diálogo entre um doutor da terra e um camponês. Dizia ele:
- Ó Manuel, era melhor mudarmos a festa para o mês de Agosto, altura em que estão cá os emigrantes.
- O quê, senhor doutor?! Então e depois como é que sabíamos quando se haviam de semear as nabiças? Com outras muitas anedotas se pode completar a radiografia antropológica desta festa e desta terra, onde num passado bem recente os elementos das Filarmónicas eram distribuídos pelas casas e passavam a ser considerados como membros da família, em que alguns deles, depois da partida, ficavam sócios em negócios e mantinham correspondência durante anos. E as pessoas referem-se-lhes sempre como “o nosso músico”. É assim que se conta o diálogo entre duas mulheres da aldeia:
- Ó Maria, que dás ao teu músico?
- Sardinhas e batatas, e tu ao teu?
- Batatas e sardinhas. Claro que este diálogo nunca aconteceu e foi inventado por invejosos moradores de terras vizinhas, que reconhecem a grande hospitalidade do povo de Felgueiras (ali entra-se às carradas) e sabem que, mesmo nos anos de fome de antigamente, as mesas de Felgueiras, no dia da festa, abarrotavam-se de “marrã”, temperada com um vinho encorporado que “até faz galarozes”. Brincam também os vizinhos com uma ingenuidade e lhaneza daquele mordomo que, em pleno arraial, se agarrou ao microfone e fez parar a música para avisar solenemente:
- Atenção, senhor guarda republicano que foi abaixar as calças atrás do muro! Olhe que deixou ficar lá o cinto! Pode vir buscá-lo aqui à cabine de som!
É também verdade que aquela romaria sempre correu na melhor ordem e não há notícias de zaragatas e barulhos, coisa frequente em muitas outras . Por isso mesmo é que as raparigas de Maçores, Carvalhal e outras terras em redor tinham licença para ficar no arraial até às três ou quatro da madrugada e, quando já estavam cansadas de bailar, se sentavam no chão vencidas pelo sono à espera da camioneta que as levasse de volta para as casas, chamando a atenção de algum velhote que comentava:
- Olha, estas estão acarradas como as ovelhas! O grupo rendia-se finalmente ao cansaço do vinho e da festa, acabando por jogar-se no chão. O comentário saía certeiro:
- O eirado está pronto; é só chamar os malhadores! E que dizer do fogo-de-artifício? É ponto de honra dos felgueirenses apresentar o melhor fogo entre as romarias da região. É bonito ver naquele monte das Eirinhas os foguetes nascerem nas alturas, explodirem na noite e extinguirem-se no chão! Aqui acompanha-se toda a vida de um foguete! Deixámos para o fim um outro aspecto, este ligado aos bastidores da festa, ao trabalho dos mordomos. E diga-se, desde logo, que os mordomos são nomeados de dois em dois anos. E, a não ser por algum motivo de força maior, não há notícia de alguém se ter negado a tal cargo, embora seja muito trabalhoso. A Comissão é sempre constituída por umas duas dezenas de mordomos residentes e por comissões mais reduzidas representando a “diáspora” felgueirense nas outras terras portuguesas, no Brasil, em frança, na Alemanha e outros países (que são igualmente importantes para a realização da Festa, pois contribuem monetariamente e, quando de férias na aldeia, ajudam em qualquer coisa que possam). Os mordomos residentes encarregam-se de angariar dinheiro, através de um peditório pela aldeia, que, religiosamente, remetem para a terra. E aqui não há distinções de classes, não há divisões entre pobres e ricos, doutores e outros. É tudo como se fosse uma grande família! Parabéns ao povo de Felgueiras! E, todos os anos, no primeiro fim-de-semana de Setembro lá estaremos na festa para homenagear Santa Eufêmia!