12/12/2024
A visita à D. Ana era uma oportunidade de a ver sorrir ao cantarolarmos juntas a música tradicional que tanto gostava. Com 92 anos e portadora de demência, permanecia em casa sozinha durante o dia. Deambulava pela casa muito devagar, a fragilidade era notória no tremor das mãos delicadas, dobradas pelas duras tarefas de outros tempos. Sempre de sorriso na cara e olhos iluminados dizia: “ Sou de uma aldeia perto de Penela, sabe onde é? É muito linda!”, e começava a cantarolar a sua música. Bons momentos aquelas horas de almoço.
Ao longo do tempo, as palavras foram reduzindo e os versos dando a lugares vazios, até desaparecerem por completo, menos o trautear. Um dia cheguei e a D. Ana estava caída com um golpe na cabeça. Alguns contatos e a casa encheu-se com os filhos e os socorristas dedicados. Sentada no chão permaneceu de olho azul, a observar aquela confusão, sem compreender o que sucedera. Estabilizada, dediquei-me a trazer a D. Ana de volta para o nosso mundo, através da nossa música Sentei-me com ela, procurei os seus olhos brilhantes que rapidamente sorriram e comecei a cantar “… No alto daquela serra, há um lenço a abanar…”, e no meio daquele caos, a D. Ana voltou sorridente e tranquila a acompanhar os meus lábios, e a dar-me as mãos, a festejar este reencontro."
A memória musical pode manter-se quase inalterada nas pessoas portadoras de demência, São muitas as pessoas que já não conseguem falar mas conseguem cantar as músicas de referência e ou até dançá-las. Neurocientistas alemães, descobriram em 2015, que a memória musical a longo prazo está preservada nestes pacientes porque a perda de neurónios e a atrofia cerebral da zona onde se armazenam estas memórias ocorre de uma forma mais lenta e gradual, o que pode explicar a persistência de memórias musicais até às fases mais avançadas da doença. É importante estimular estas pessoas com música pelos vários benefícios. Não havendo ainda cura para a doença, as intervenções musicais parecem retardar o processo de degeneração cerebral, constituindo-se como uma ferramenta no acompanhamento destas pessoas e uma forma de as fazer recordar momentos agradáveis, importantes e marcantes das suas vidas.